O racismo obstétrico é uma forma de violência institucional que atinge, de maneira direta, a dignidade, o bem-estar e a vida de mulheres negras, indígenas e de outras etnias minorizadas durante o ciclo gravídico-puerperal. No Brasil, onde o racismo estrutural permeia diversas esferas sociais, ele se manifesta de forma preocupante dentro dos serviços de saúde, com impactos graves na saúde física e mental das gestantes.
Mais do que um problema ético ou social, o racismo obstétrico é crime. Segundo a Lei nº 7.716/1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, praticar, induzir ou incitar a discriminação pode acarretar pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa. Além disso, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
O que é racismo obstétrico?
O termo “racismo obstétrico” foi cunhado para nomear as práticas discriminatórias no atendimento às gestantes, parturientes e puérperas, motivadas por questões raciais. Ele pode se manifestar de maneira sutil ou explícita, como:
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A negação ou atraso na oferta de analgesia (alívio da dor) sob a falsa ideia de que mulheres negras “aguentam mais dor”;
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Comentários pejorativos, estereotipados ou desumanizantes;
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Pressão para retirada de tranças, apliques ou turbantes sem justificativa clínica;
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Ignorar ou minimizar queixas de dor ou sofrimento;
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Falta de acesso às mesmas orientações, exames e cuidados oferecidos a mulheres brancas;
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Desrespeito à autonomia da gestante sobre seu corpo e plano de parto.
Essas práticas perpetuam estereótipos racistas, como o da “mulher forte”, e desumanizam o cuidado com mulheres negras e indígenas.
Estudos que comprovam a existência do racismo obstétrico
Pesquisas vêm demonstrando a profundidade desse problema. Segundo o Dossiê sobre Violência Obstétrica da Articulação de Mulheres Brasileiras (2019), mulheres negras são as principais vítimas de negligência, abuso e maus-tratos durante o parto.
O Ministério da Saúde, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicou em 2010 a pesquisa “Nascer no Brasil”, que revelou que mulheres negras têm menos acesso à analgesia, menor taxa de partos normais com boas práticas e mais intervenções desnecessárias. Elas também enfrentam maiores taxas de mortalidade materna — o que é confirmado por dados da ONU Mulheres e da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).
A pesquisa “Violência Obstétrica e Racismo Institucional no SUS”, realizada pelo Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (2021), apontou que 57% das mulheres negras relataram vivência de violência obstétrica, em comparação com 33% das mulheres brancas.
Impactos do racismo obstétrico
O racismo obstétrico compromete a saúde física, mental e emocional da gestante e do bebê. Entre os principais impactos, estão:
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Aumento da mortalidade materna e neonatal;
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Maior risco de parto prematuro;
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Depressão pós-parto e ansiedade;
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Baixa adesão ao pré-natal e ao acompanhamento pós-parto, devido ao medo e à desconfiança no sistema de saúde;
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Traumas psicológicos duradouros.
Além disso, o racismo obstétrico rompe laços de confiança entre gestantes e profissionais de saúde, tornando mais difícil o acesso a um cuidado digno e baseado em evidências.
Como identificar o racismo obstétrico?
Você pode estar diante de uma situação de racismo obstétrico se:
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A gestante for tratada com desdém, ironia ou julgamento por sua aparência, cabelo, sotaque ou religião;
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Receber menos atenção ou orientações que outras pacientes na mesma situação;
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For tocada sem consentimento ou exposta sem necessidade;
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Tiver sua dor desconsiderada ou questionada com frases como “isso é normal” ou “para de frescura”;
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For impedida de manter seus adereços culturais ou religiosos sem motivos clínicos claros.
Esses comportamentos, quando motivados por preconceito racial, configuram racismo obstétrico e devem ser combatidos.
Como denunciar o racismo obstétrico?
É fundamental denunciar casos de racismo obstétrico para que essas práticas não se repitam. Veja como proceder:
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Registre tudo: anote datas, horários, nomes dos profissionais, locais e testemunhas, se houver.
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Peça uma cópia do prontuário médico – você tem esse direito garantido pela Lei nº 13.787/2018.
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Denuncie na ouvidoria da maternidade onde o fato ocorreu.
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Faça uma denúncia na Ouvidoria do SUS pelo telefone 136 ou no site https://ouvidoria.saude.gov.br.
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Busque apoio da Defensoria Pública do seu estado ou do Ministério Público, principalmente para casos graves com risco de dano à integridade da mãe e do bebê.
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Registre boletim de ocorrência na delegacia, preferencialmente nas Delegacias de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI), se disponível na sua cidade.
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Utilize plataformas como a Rede Feminista de Juristas (DeFEMde) ou coletivos de doulas e movimentos negros, que podem dar suporte jurídico e emocional.
Como combater o racismo obstétrico no dia a dia?
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Educação antirracista deve estar presente nas graduações em saúde e nos treinamentos continuados;
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Hospitais e unidades básicas de saúde precisam implementar protocolos de equidade racial no atendimento;
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A presença de doulas, especialmente aquelas com formação antirracista, pode ser uma aliada poderosa no acolhimento de gestantes;
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É essencial promover espaços seguros de escuta e acolhimento às mulheres que sofrem essas violências.
Considerações finais
O racismo obstétrico é uma forma cruel de desumanização que precisa ser nomeada, enfrentada e erradicada. Reconhecer que ele existe é o primeiro passo para combatê-lo. Toda mulher tem o direito de viver uma gestação e um parto com dignidade, respeito e cuidado integral.
Se você presenciou ou foi vítima de racismo obstétrico, não se cale. Denunciar é um ato de coragem que pode salvar outras vidas. E, para quem trabalha com gestação, é dever ético e humano construir um ambiente onde o racismo não tenha vez.
Referências:
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Lei nº 7.716/1989 — Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor (Planalto)
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Constituição Federal de 1988 — Art. 5º: igualdade perante a lei (Planalto)
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Lei nº 13.787/2018 — Direito de acesso ao prontuário médico (Planalto)
- OPAS/OMS – Situação da Saúde Materna no Brasil
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Disparidades raciais: uma análise da violência obstétrica em mulheres negras
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Interseccionalidade, racismo institucional e direitos humanos: compreensões à violência obstétrica